terça-feira, 22 de julho de 2014

Há guerreiros que nunca caem.

HOMENAGEM: Rubens dos Santos
Há guerreiros que nunca caem. O polêmico cidadão várzea-grandense - cujo corpo está sendo velado no Legislativo local - é um deles. Rubens dos Santos, da família Baracat, imortalizou seu nome na história dos grandes feitos esportivos e jornalísticos do Estado. Também tem seu nome assinalado na galeria dos ex-integrantes do Parlamento Municipal 

Reporter:  João Carlos Queiroz 
Foto:  Robson Silva 
Fonte:  Secom/VG 

Com um concorrido velório, a Câmara Municipal de Várzea Grande realizado em (18.07) uma última homenagem a um dos seus destacados integrantes, o jornalista/esportista Rubens dos Santos, que faleceu nessa madrugada, aos 86 anos. O "velho guerreiro", como gostava de ser chamado, é responsável por uma formação respeitada de profissionais da mídia e do futebol, esporte que amava e incentivava. Aliás, ele aportou em Mato Grosso decidido a se tornar jogador profissional, apaixonando-se igualmente pela política.
 
O prefeito Wallace Guimarães externou sentimento de luto pessoal e oficial pela perda do ilustre conterrâneo. "Gostava muito dele. Tínhamos uma amizade longa e sincera. Foi meu conselheiro político por inúmeras vezes. Pode-se dizer que "seu" Rubens contribuiu de maneira decisiva para que novos horizontes de progresso de Várzea Grande se consolidassem. Tinha visão privilegiada sobre tudo, inteligência aguçada para antever o desfecho de situações complexas. Sua personalidade forte, decisiva, imbuída de carisma, é exemplo de determinação para a presente e futuras gerações".
 
Também senti a perda do meu antigo diretor jornalístico. Conheci "seu" Rubens num final de tarde melancólico em Várzea Grande-MT, em 2002. Tinham me alertado para seu gênio indócil, famoso por tiradas piadistas ácidas e mudanças de humor repentinas. Era então o comandante supremo do jornal Correio Várzea-Grandense, ainda hoje em circulação regular no município pelas mãos do neto, Renato Júnior. 
 
Já sabia que "seu" Rubens  tinha presidido o Operário Clube e era uma 'pedra no sapato' de muitos políticos mato-grossenses. Costumava alfinetar e cobrar resultados imediatos, benefícios para o município. Houve quem recuasse 100% diante da insistência dos seus ataques diretos na mídia e desabafos intempestivos na coluna diária, a mais lida do jornal.
 
Em momentos assim, suas pupilas se dilatavam {feito pavão} e a face do velho Rubens se transfigurava, tomada de forte vermelhidão. Indícios claros de que nenhuma conversa com ele seria promissora, mas altamente desagradável...
 
Pois bem: meio sem esperança, adentrei timidamente na sala do  diretor para tentar um emprego no jornal. "Seu" Rubens contratara um barbeiro e estava comodamente refestelado numa cadeira giratória. Não mexia um músculo sequer do rosto, mesmo quando falava algo. Cuidado óbvio para que a navalha não cortasse um fio, além do necessário.
 
- Então, rapaz, quer um emprego, não? Mas... sabe escrever? Aqui tem um monte de gente boa e alguns enganadores. Quero alguém que escreva bonito! Consegue isto?
 
Antes que respondesse, pausa justificada pela surpresa do tom direto e quase agressivo, "seu" Rubens disparou um coice disfarçado:
 
- Ih, começou mal... Jornalista que não tem respostas prontas, na ponta da língua, pra mim não é jornalista! Sabe ou não escrever? Estou perguntando, ora! Ou não escutou?
 
Sorri sem graça, antes de responder com voz abafada:
 
- Escrevo mais ou menos, "seu" Rubens. Dá pra sobreviver... - respondi acuado.
 
- Hummmm... Esse "mais ou menos" significa o quê? Não veio aqui pra me enrolar, né? Está querendo se divertir com minha cara? Tenho mais coisas pra fazer!
 
- Não, em absoluto! Quero é trabalhar. E posso começar já!
 
O barbeiro deve ter sentido o clima tenso daquela conversa e cessou seu trabalho por uns instantes, navalha no ar, afastada prudentemente do rosto daquele cliente sisudo. "Mas "seu" Rubens logo o crivou com um olhar intimador e ele retomou sua atividade profissional de forma automática.
 
Quanto a mim, continuei ali, no meio da sala, aguardando resposta. Pelo menos uma frase animadora que pudesse quebrar o pesado silêncio sepulcral que se instalara.
 
Deduzi que meu primeiro contato com "seu" Rubens tinha sido o pior possível. Dificilmente seria contratado...
 
Estava ainda assim, praticamente perdido, sem ação, aguardando o bota-fora, quando Valdemar Félix (editor-geral) entrou na sala e "seu" Rubens o instruiu, claramente insatisfeito:
 
- Esse aí (eu) disse que quer trabalhar conosco. Afirma que escreve "mais ou menos". Conhece ele? - inquiriu curioso.
 
Valdemar sorriu simpático e confirmou que já me conhecia. Eu também o conhecia e admirava sua dedicação ao jornalismo. Um excelente colega.
 
- Ele sabe escrever sim, "seu" Rubens! O cara é bom!
 
- Bom?! Sabe, como? Já viu textos dele? onde? Quero ver se sabe é aqui, no meu jornal. Pois ele começa a trabalhar agora! Mande fazer alguma coisa para que possamos avaliar. Ainda não vi nada, você garante? Ele mesmo me disse que escreve para sobreviver. Não quero gente assim comigo, mas competente, entendeu? Se não prestar, mande embora logo, lá da redação!
 
Valdemar cristalizou seu sorriso, sem saber exatamente qual atitude tomar diante de ordens tão diretas, em tom insolente. Seu patrão era um osso duro de roer, sabia. E quando cismava com algo... 
 
- Venha, vou apresentá-lo ao pessoal! - convidou-me gentilmente. 
 
Nem pestanejei com essa dica salvadora do nobre jornalista. Saí da sala agradecendo ao velho Rubens, que ainda fez um gesto vago, de enfado, com uma das mãos, entretido com o próprio barbear. Não queria mais conversa comigo.
                                                             
Nas semanas seguintes, limitei-me a escrever textos jornalísticos comuns. Valdemar comentou que precisava de determinado editorial para provocar alguma reação pública. Tema sugerido, fiz o editorial e ele aprovou. Passei a ser editorialista em todas as edições do Correio.
 
"Seu" Rubens ficou sabendo disso e mudou a forma de me tratar. Passou a ser mais cortês. Não quando algo o desagradava profundamente na redação e sobrava para todos. Em ocasiões polêmicas, costumava promover reuniões para pipocar sua revolta e dizer claramente tudo que queria.  Fui o Cristo em algumas delas...
 
Logo me graduaram à condição de editor de Política do jornal. Promoção que implicava em ficar longo tempo na sala do velho Rubens, todo santo dia. Ele queria saber das novidades e minha opinião a respeito delas.
 
Em várias ocasiões, eu não tinha nenhuma novidade que o motivasse, mas inventava possíveis reviravoltas políticas, avaliava quem subia e quem caía. "Seu" Rubens dava gargalhadas ao imaginar tais cenas acontecendo. O segredo residia em falar tudo que queria ouvir. E ele aproveitava esses papos para ditar os tópicos da famosa coluna do Velho Guerreiro, publicada diariamente na página 2 do jornal.
 
"Seu" Rubens costumava também nos desafiar. Chamou-me certa vez à sua sala e pediu que redigisse duas páginas (lado a lado). "Sei que consegue. Você escreve rápido e enche páginas de palavras que nem pipoca na panela" - exemplificou.
 
O tema contratado era uma visita de um secretário do Governo Dante de Oliveira à Assembleia Legislativa, prédio atual da Câmara de Cuiabá. "Seu" Rubens queria logo o texto para avaliar. "Vai lá e escreva tudo. Capriche no texto". Nem sei como consegui realizar essa façanha...
 
De simples pretendente a um emprego no jornal, tornei-me o redator predileto do seu proprietário em menos de oito meses. Foram anos de trabalho por lá. Mas passei bons e maus momentos na condição de empregado do "velho guerreiro". Fui menosprezado e valorizado nesse tempo, mas soube contabilizar tudo no quesito experiência. Também aprendi muito com o editor Valdemar Félix, experiente, paciente e bom ouvinte. Até de prosa ruim que levava pra ele...
 
"Seu" Rubens partiu repentinamente, de morte natural. Mas sei que viverá em Várzea Grande na lembrança de quantos o conheciam ou ouviram falar de suas proezas de cidadão incomum. Até há pouco tempo cumpria expediente não regular no jornal, já acometido de doenças típicas da idade. Encontrei-o meio acabrunhado há alguns meses na ante-sala da Prefeitura de Várzea Grande. Apesar da senilidade evidente, ele me reconheceu de imediato, já intimando no pós-cumprimento.
 
- Você era meu empregado, sumiu... Mas venha cá! Quero conversar com você!
 
Conhecedor da austeridade de "seu" Rubens e do tempo que esse papo iria demorar, argumentei que precisava sair naquele momento, pois tinha compromisso urgente. Ele pareceu não escutar direito, e repetiu o convite para tomar assento ao seu lado. Dediquei-lhe alguma atenção carinhosa e deixei a sala educadamente.
 
Antes de fechar a porta de vidro, captei o ollhar decepcionado, talvez saudoso, triste, daquele senhor que tantas vezes discutiu comigo de forma raivosa, punindo-me por faltas que desconhecia no dia a dia do jornal. Por ele, conversaríamos a tarde inteira...  
 
Também me surpreendi por não sentir qualquer rancor vingativo pelas broncas que levei de "seu" Rubens, compadecendo-me pela comprovação de que um 'novo' homem poderia estar impregnado naquela figura frágil da atualidade, talvez desmotivada diante da própria existência de puro amargor.
 
Ao descer as escadas do prédio da Prefeitura, tive certeza de uma coisa: aquele velho guerreiro era figura imbatível, a despeito dos anos e das mudanças políticas. Até mesmo a despeito de continuar vivo fisicamente, o que hoje não é sua realidade. Tornou-se um imortal pela sua condição inusitada de trabalhar com jornalismo e jornalistas. Várzea Grande inteira deve muito a ele, disse muito bem o prefeito Walace. Sua coluna contribuiu para que muitos entraves locais fossem resolvidos.
 
Em resumo: já homenageado diversas vezes enquanto vivo, "seu" Rubens continua candidato a receber outros tributos em face das ações que edificou na terra adotada. O tempo confirmará isso...
 
*João Carlos de Queiroz é jornalista profissional*

Fonte: http://www.varzeagrande.mt.gov.br/conteudo/13182

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